75. Ontem um bom amigo convidou-me a participar num jantar onde no final ouviria um declamador de poesia de que já me tinha falado. Falhei ao jantar mas, no final, fui lá para ouvir Luís Pedro. E fiquei impressionado. Os poemas declamados de cor, com uma intensidade estarrecedora, transportavam-nos, como que, para a voz do poeta. Por momentos parecíamos estar a beber de toda a original vontade criadora de quem, um dia, com traço de génio, havia escrito aquelas palavras.
Imagine-se alguém saber de cor a Tabacaria, de Álvaro de Campos, completa, ou de memória declamar integralmente a Toada de Portalegre, de José Régio.
Se antes de ir, dei por mim a contar as horas de sono que me faltavam, vim de lá cheio de energia positiva. Em Julho voltará, e prometeu, que recitará a Ode Triunfal, de Álvaro de Campos, que entretanto anda a decorar. Mal se pode esperar.
O Luís Pedro recitou muitos poemas a pedido. Recitou um, dos que prefere, de Fernando Pessoa, que eu não conhecia:
Conta a lenda que dormia uma
Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas, cada um cumpre oDestino -
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
(Fernando Pessoa )EROS & PSIQUE
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