quarta-feira, 18 de agosto de 2010

[1134.] Mercurii dies

Portugal e os fogos

Segunda Parte

Na passada edição, procurámos reflectir sobre a problemática dos incêndios florestais no Verão português tomando como base o que se estava a passar na Rússia – com um alarmante número de incêndios activos e com o debate e consequências políticas que o mesmo estava a provocar.
Reflectindo nós próprios um pouco mais sobre o assunto, e com a noticia da morte de mais um soldado da paz em serviço, desta vez em Lourosa, no norte do nosso distrito de Aveiro, não podemos deixar de voltar ao assunto, particularmente quando da boca do ministro da Agricultura ouvimos a intenção de ser suscitado um debate sobre a hipótese de nacionalização dos terrenos florestais que estejam a ser negligenciados pelos proprietários e a pôr em causa a segurança nacional.
Assim, lançamos à fogueira, mais dois aspectos cuja reflexão ora partilhamos. Em primeiro lugar sobre o papel dos bombeiros voluntários na protecção civil nacional e, em segundo lugar, sobre a responsabilidade dos proprietários florestais na ocorrência de fogos florestais.

I.

De 29 de Julho a 15 de Agosto de 2010 deflagraram, em Portugal, 6652 fogos florestais. Uma média de 370 incêndios florestais por dia. Para combater estes incêndios foram precisos 89404 operacionais, uma média de 4967 bombeiros por dia – no sábado, 14 de Agosto, e só nesse dia, estiveram em acção 6467 bombeiros – e de três fogos por cada bombeiro português. Existem em Portugal 28 mil bombeiros activos – números do ministro da Administração Interna, divulgados em 25 de Julho. Destes cerca de 89 por cento são voluntários. Ou seja, se não fossem os bombeiros voluntários este país, nestes dezoito dias, tinha ardido completamente.
Todos temos noção de que o bombeiro voluntário é alguém que tem a sua profissão e que assume a tarefa de assegurar a protecção civil da comunidade no seu tempo livre – em detrimento do descanso ou do lazer – ou em prejuízo do seu horário normal de trabalho. Num tempo em que a precariedade laboral é significativa é notório que por muito que a lei proteja o bombeiro, à entidade patronal acaba por ser mais vantajoso empregar uma pessoa que não tem o ónus de ser bombeiro do que alguém que pode ter necessidade de abandonar o seu local de trabalho a meio da jornada laboral. Num modelo ideal de economia esta situação – este esforço de responsabilidade social de uma empresa – é bonito, mas na economia real significa um prejuízo concreto.
Os corpos de bombeiros voluntários – mais de meio milhar – são, na quase unanimidade dos casos, financiados por associações humanitárias que, por sua vez, garantem a sobrevivência do corpo activo através de subsídios das Câmaras Municipais, quotização dos associados, alguma prestação de serviços (que o Estado geralmente paga mal) e peditórios que os bombeiros se vêem na contingência de fazer. Ou seja, os meios técnicos essenciais para a operacionalidade dos bombeiros voluntários têm de ser garantidos pelas comunidades onde estão inseridos. A realidade de hoje – e bem – leva a que todos os meios tenham de ser mobilizados para onde são necessários o que faz com que, por exemplo, a maior parte de incêndios florestais em que os bombeiros da Mealhada operam num ano tenham lugar noutros teatros que não o da sua área de acção. Dito de outra forma, os meios dos bombeiros voluntários de uma comunidade deixaram se ser usados nessa comunidade para servirem o interesse colectivo nacional. Ou seja, não deveria caber ao Estado a fatia maior do financiamento destes corpos de bombeiros ou, pelo menos, a intermediação no custo dos meios, de forma a serem mais baratos?
O ministro da Administração Interna, Rui Pereira, disse declarar que “os 28 mil bombeiros portugueses são o primeiro exército de proximidade com as populações para fazer frente a questões de protecção civil, fogos florestais, desastres e calamidades”. Para o titular da pasta da Administração Interna, os bombeiros continuam a ser “o primeiro elemento de resposta próxima a todos estes fenómenos”. O mesmo é dizer que o Governo reconhece que a função de soberania de Segurança dos cidadãos, que constitucionalmente cabe ao Estado – neste caso de protecção civil contra fogos florestais, desastres e calamidades – em vez de ser por ele garantida e de ser por ele financiada com o dinheiro dos impostos, é assegurada quase exclusivamente pelo apoio das autarquias e pelo resultado da tarefa degradante de os bombeiros terem de estar de chapéu na mão a pedir dinheiro em peditórios nas rotundas para terem, eles próprios, condições para garantirem a nossa protecção.

II.

A evolução do fogo numa área de floresta abandonada é assustadora. Chega a surpreender os próprios bombeiros. Décadas de abandono progressivo da floresta e da agricultura transformaram as zonas rurais do nosso país em autênticos barris de pólvora. Se repararmos, concelhos como o de Mortágua, onde a economia florestal é dominante, não têm tido problemas nenhuns com incêndios, enquanto que nos concelhos limítrofes, como Penacova ou Tondela, a realidade é completamente diferente.
O relato de um bombeiro de Penacova, reproduzido no jornal FRONTAL, é ilustrativo da situação a que nos referimos:“As habitações com o mato e os eucaliptos junto às portas são uma constante. Há aldeias com casas que nos últimos vinte anos já arderam pela terceira vez, e, a vez seguinte, tem sido sempre pior do que a anterior. O combustível nas florestas, nas valetas, nos quintais das habitações é cada vez maior. As silvas e o mato mais se parecem com trepadeiras, os jardins e os pequenos terrenos antes amanhados, são agora pastos fáceis das chamas. O que há dez anos demorava quatro ou cinco dias a arder, agora arde em apenas 4 horas, tal é a carga de combustível acumulado. Nestas condições, aqui ou em qualquer outra parte do mundo, é e será sempre uma tarefa muito difícil combater o fogo. Todos nós, bombeiros, população e outras entidades envolvidas, damos naturalmente o nosso melhor. Damos o que podemos e o que não podemos. Fazemos como se diz por cá, ‘das tripas coração’, mas não conseguimos operar milagres. Todos os dias temos tido diversas ocorrências de incêndios florestais e nos últimos quinze anos, a média anual tem andado acima dos oitenta fogos por ano. A todos eles temos sabido chegar primeiro do que a tragédia. Muita gente destas nossas aldeias, habituada a ver nos seus bombeiros uma tábua de salvação, questiona-se agora como foi possível (refere-se ao incêndio de 28 e 29 de Julho)? Mas não nos admiremos, basta olharmos à nossa volta e verificar o estado da floresta”.
Consciente deste pesadelo, o ministro António Serrano, da Agricultura e das Florestas, declarou ter intenção de suscitar um debate sobre a hipótese de nacionalização dos terrenos florestais que estejam a ser negligenciados pelos proprietários e a pôr em causa a segurança nacional. A ideia não seria descabida se o pior proprietário florestal português não fosse o Estado. Mas a verdade é que é.
Não precisamos de ir muito longe para atestarmos do comportamento completamente negligente que o Estado assume relativamente às áreas florestais que possui. O que se passou com o perímetro florestal do Bussaco chega a ser criminoso. Árvores que arderam em 2005 foram abatidas cinco anos depois. Árvores infectadas com o nemátodo do pinheiro ali permaneceram durante anos, quando ao lado o Estado obrigava os proprietários privados a abater as suas sem qualquer compensação. O abate das árvores, no segundo trimestre de 2010 foi feito de forma selvagem, e deixou para trás toneladas de detritos que hoje são pasto perfeito para as chamas, para além de ter destruído caminhos e corta-fogos. Acrescendo o facto de não haver qualquer preocupação com a reflorestação do perímetro ou prevenção contra infestantes.
Muito do que tem ardido em Portugal neste mês de Agosto tem sido em terrenos mal tratados do Estado. O exemplo que demos do perímetro florestal do Bussaco, durante anos e ainda hoje, obrigaria esse Estado-Estado a começar estas nacionalizações por negligência por castigar o Estado-Proprietário que assume, tantas vezes um comportamento perfeitamento criminoso. O que faria o Estado de diferente com a floresta nacionalizada?

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