O Nobel português da Literatura, José Saramago, faleceu na passada sexta-feira, a escassos meses de completar 88 anos. A morte de um homem é sempre de lamentar e por isso se ouviram elogios e o apelo ao esquecer de polémicas, como se ser polémico não fosse a maior qualidade do autor de “Caim” e do “Evangelho segundo Jesus Cristo”. Portaram-se à altura da dignidade que merece um dos maiores escritores portugueses os dignitários do Estado português – porque também aqui a falta de coerência soaria a falso. Três dias de luto nacional e orgulho de saber que apesar de exilado, José Saramago desejou que os seus restos mortais permanecessem em Portugal.
José Saramago foi dos melhores polemistas portugueses. Pôs-nos a discutir, a tomar partido, a amar e a odiar. Pedir que se esqueçam polémicas na hora da sua morte – a morte que ele próprio parodiava – seria diminuir o homem. E isso não fazemos.
Recorremos, por isso, a um texto publicado por outro grande polemista, Abílio Duarte Simões, no Correio de Coimbra, em 15 de Outubro de 1998, dias depois do anúncio de que Saramago receberia o prémio Nobel da Academia Sueca. Um texto provocatório de alguém que respeitamos profundamente. Um texto, “Carta a Saramago”, sem vírgulas, sem pontos, sem medo, sem pudor, com ousadia, com uma pontinha de arrogância, com graça… de alguém que José Saramago não encontrará no Céu, mas que nem por ser padre se dava ao trabalho de se achar incapaz de falar com quem não seria tão tolerante como ele.
Carta a Saramago
Excelentíssimo senhor José Saramago deixe que um pobre proletário lhe dê os parabéns atrasados mas sem culpa depois de tantos já o terem feito desde capitalistas muitos a socialistas alguns comunistas onde é que eles estão parabéns porque não é por acaso que se ganha um prémio de cento e quarenta milhões de escudos que seriam escudos de mais para qualquer internacionalista amigo da classe operária menos para vossa excelência que um comunista também tem o direito de gozar as delícias do ignóbil capitalismo mesmo que o contrário não seja verdadeiro e se essas delícias puderem ser gozadas numa paradisíaca ilha ainda melhor mesmo para quem não acredita no paraíso do além e não consegue criar iguais paraísos para todos os seus semelhantes porque a verdade é que somos todos iguais mas sempre há-de haver uns poucos mais iguais que muitos outros porque assim é que dá luta e se acabassem as desigualdades o que é que se havia de escrever se alguém ler estas minhas palavras é capaz de duvidar da sinceridade dos parabéns mas eles são mesmo a sério também a sério lhe quero dizer que não percebi o seu desagrado pelo que escreveu o jornal do papa quando lhe chamou comunista inveterado eu pensava que dizer isto era um elogio sagrado a um reconhecido laico até fui ver aos dicionários e lá vem que inveterado significa enraizado arreigado arraigado crónico tudo palavras bonitas e elogiosas de modo que como disse não percebi o desencanto pois também não acredito que não querendo ser inveterado seja envergonhado visto que logo no dia seguinte li um artigo de vossa excelência a explicar o que significa ser escritor comunista hoje também não percebi os comentários de alguns senhores professores da faculdade de letras da universidade de coimbra dizendo que as palavras do jornal romano lembravam velhos processos inquisitoriais e assim nos lembraram eles a todos velhas estórias que também aconteceram depois do vinte e cinco de abril transformando jornais em patíbulos coisas que já nem adianta lembrar mas sempre gostava de saber como é que esses senhores professores reagiriam se os alunos lhes apresentassem para avaliação certos textos que só se sabe onde começam e onde acabam “com parábolas esta das parábolas deve ter sido piada dos académicos suecos mas ninguém leva a mal com parábolas transcrevia sustentadas pela imaginação, ironia e compaixão, a permitir captar continuamente uma realidade ilusória” termino com um pedido nunca escreva nada sobre Marx em Staline que possa impressionar os marxistas se os houver nem os estalinistas se tiverem existido mais vale achincalhar aqueles que sabem e praticam o dever de perdoar esses mesmos desgostos sempre compram os livros não interferem nos circuitos de comercialização não montam máquinas publicitárias podem não concordar com o que lêem mas perdoam sempre mesmo aos que sabem o que fazem.
Abílio Duarte Simões
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